A integridade da pesquisa exige que os pesquisadores e centros de investigação sigam princípios e padrões éticos e profissionais [1]. Em 2019, a Conferência Mundial sobre Integridade em Pesquisa aprovou os Princípios de Hong Kong para pesquisadores e instituições [2]. Esses princípios genéricos de integridade e padrões de pesquisa devem ser aplicados aos estudos de biomedicina e ciências da vida, que sustentam a pesquisa em saúde e constituem a base de evidências sobre a qual se apoia a Medicina Baseada em Evidências (MBE).
Na hierarquia das evidências, os ensaios clínicos randomizados (ECR) ocupam os níveis mais altos, mas o crescente número de retratações e de expressões de preocupação sobre sua implementação gerou dúvidas sobre se a MBE tem sido afetada pela incorporação de evidências problemáticas [3].
O desenho dos ECR minimiza o risco de viés de seleção ao alocar aleatoriamente os participantes em grupos experimentais ou de controle e acompanhá-los para comparar os resultados. Daí decorre que a integridade no desenho, condução, análise e publicação dos ECR é essencial para garantir a confiabilidade das evidências que fundamentam a MBE.
Reconhece-se, portanto, a necessidade de especificar princípios genéricos de integridade nessa disciplina. Os pesquisadores envolvidos no desenho e execução dos ECR precisam de políticas e diretrizes sólidas e específicas para assegurar a integridade da pesquisa. O tema desta edição da Frontiers, “A integridade dos ensaios clínicos randomizados”, aborda questões relacionadas à integridade em diversas etapas do ciclo dos ECR.
Globalmente, existem cerca de 48.000 periódicos científicos, em inglês e outros idiomas (aproximadamente 30%, ou 16.000, são da área biomédica), com crescimento anual de cerca de 3% [4]. Entre as publicações submetidas à revisão por pares, a maior parte das críticas se dirige à pesquisa biomédica e clínica.
Todos os anos, são publicados entre 25.000 e 30.000 ECR apenas nas revistas indexadas na base de dados PubMed [3]. Ensaios com problemas de integridade contaminam o ecossistema da pesquisa biomédica e das ciências da vida, afetando as diretrizes clínicas elaboradas por associações profissionais e as autorizações de comercialização concedidas por órgãos reguladores de medicamentos e dispositivos médicos.
A MBE é prejudicada pelo fato de que nem todos os ECR publicados são conduzidos com o mesmo rigor científico. É preciso concentrar esforços nos ECR, pois eles contribuem diretamente para a prática clínica e para as recomendações de políticas públicas. Ensaios clínicos com deficiências continuam sendo citados e utilizados em revisões de evidências, e, quando são retratados, raramente se corrigem as revisões sistemáticas e diretrizes de prática clínica [5].
Os artigos publicados nesta edição sobre “A integridade dos ensaios clínicos randomizados” abrangem uma ampla gama do ciclo de vida dos ECR. Por exemplo, um reanálise dos registros do Registro Chinês de Ensaios Clínicos (ChiCTR)destacou problemas de qualidade, um desafio global sem fronteiras geográficas [6].
Adotar uma conduta responsável na realização de ECR requer enfrentar desafios, definir papéis, assegurar o desenvolvimento profissional e fortalecer ambientes institucionais adequados [7].
Em relação à publicação dos ECR, uma análise de ensaios sobre traumatismo cranioencefálico, registrados no ClinicalTrials.gov, revelou lacunas de informação preocupantes [8]. Já no estágio pós-publicação, verificou-se que o número de citações de artigos retratados na área de reprodução assistida é baixo, sendo o plágio o problema mais comum, e os ECR o tipo de publicação mais frequentemente retratado nesse campo [9].
Analisar os problemas ao longo do ciclo de vida da pesquisa é fundamental, pois não se pode esperar que a revisão por pares e as avaliações editoriais eliminem ECR com falhas de integridade em seu desenho e execução. É preciso agir em todas as fases, envolvendo todas as partes interessadas e promovendo uma visão compartilhada de responsabilidade na pesquisa [10].
A avaliação da integridade dos artigos durante a revisão por pares e nas sínteses de evidências é limitada pela falta de validação das listas de verificação de integridade dos ECR [11, 12]. É importante reconhecer que a integridade da pesquisa é um conceito multidimensional, que vai além da verificação de manuscritos já concluídos. Ela abrange todo o processo: concepção e desenho dos ECR, aprovação ética e consentimento, execução e análise conforme o protocolo aprovado e o plano estatístico registrado, além da apresentação e correção dos resultados publicados.
Garantir a integridade em cada uma dessas etapas é responsabilidade de pesquisadores, instituições acadêmicas, agências de fomento e editoras, entre outros atores. Para isso, são necessárias diretrizes específicas de integridade para os ECR.
No caso dos ECR, a guia genérica de integridade contida nos Princípios de Hong Kong (2019) [2] e em suas versões posteriores apresenta limitações [10]. Essas recomendações visam promover uma conduta responsável em todas as disciplinas científicas, mas, como a cultura de pesquisa é específica de cada área, sua natureza genérica limita a aplicabilidade.
Por exemplo, um documento de 2023 mostrou que os códigos de conduta das universidades australianas envolvidas em pesquisa médica e sanitária não enfatizaram adequadamente o registro de protocolos, o fornecimento de códigos de análise e a prevenção do “p-hacking”, entre outros princípios de transparência e abertura [13].
Nesse contexto, um grupo internacional de especialistas, representando todo o espectro de partes interessadas, desenvolveu as Declarações de Consenso do Cairo especificamente sobre a integridade dos ECR.
As partes envolvidas vieram de todos os continentes habitados, de países desenvolvidos e em desenvolvimento, e incluíram pesquisadores clínicos, representantes de consumidores, associações profissionais, financiadores e editores científicos.
As Declarações de Integridade do Cairo são guias de boas práticas de pesquisa, baseadas em consenso internacionale sustentadas pela literatura científica, para as etapas-chave de todo o ciclo de vida dos ECR [14, 15].
Estabelecer consenso será um esforço contínuo, que exigirá revisões e atualizações à medida que novas evidências surjam e que a disciplina de pesquisa em ECR evolua. A atualização recente da Declaração de Helsinque, promovida pela Associação Médica Mundial, incorporando novas cláusulas sobre integridade em pesquisa, é um sinal de que o avanço segue na direção correta [16].
Espera-se que esta edição da revista, dedicada à integridade dos ensaios clínicos randomizados, ao enfatizar a importância de definir o que constitui conduta responsável em cada disciplina, represente um passo importante rumo à produção de pesquisa útil para fortalecer a MBE.
Além disso, deve ter um impacto mais amplo, promovendo uma cultura de integridade na pesquisa biomédica e nas ciências da vida. Para além dos benefícios à MBE e à pesquisa em saúde, defender a integridade científica é um investimento essencial para recuperar e manter a credibilidade dos cientistas como um grupo profissional respeitado e valorizado pela sociedade.
Referências