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Novidades sobre a Covid

Quem acabou com a isenção dos ADPIC para as vacinas?

(Who killed the vaccine waiver?)
The Bureau of Investigative Journalism, 11 de outubro de 2022
https://www.thebureauinvestigates.com/stories/2022-11-10/who-killed-the-vaccine-waiver
Traduzido por Salud y Fármacos, publicado em Boletim Fármacos: Ética 2023; 1(1)

Palavras-chave: conduta da indústria farmacêutica, OMC, Johnson & Johnson, pandemia, cobiça, isenção do ADPIC, coerção da indústria, People’s Vaccine Alliance, lobistas da indústria, proposta Índia-África do Sul, pandemia, comércio internacional, Propriedade Intelectual (PI)

Pontos principais

  • Uma proposta radical apresentada no auge da pandemia buscava eliminar a proteção de propriedade intelectual dos produtos da Covid-19 na esperança de que os países mais pobres tivessem um melhor acesso às vacinas.
  • As grandes empresas farmacêuticas fizeram lobby para que a proposta não fosse aprovada e algumas das grandes empresas disseram aos governos que reconsiderariam seus investimentos se o país apoiasse a isenção.
  • Os executivos da indústria tinham acesso direto aos altos funcionários da União Europeia (UE) que desde o início ficaram do lado das grandes empresas farmacêuticas e incentivaram os estados membros a se alinharem.
  • O governo Biden se posicionou a favor da proposta, mas não cumpriu sua promessa com ações concretas.
  • Os negociadores dos países ricos bloquearam e diluíram a proposta na Organização Mundial do Comércio (OMC).

“É uma ameaça direta? Não sei.” O assessor do primeiro-ministro belga questionou-se calmamente ao explicar um telefonema de lobistas que recebeu em 2021, mas o conteúdo da conversa é extraordinário.

A ligação foi de um porta-voz da Janssen, subsidiária da Johnson & Johnson (J&J) fundada na Bélgica e que desenvolveu a vacina de dose única contra a covid-19. Segundo este assessor, o porta-voz alertou que se a Bélgica apoiasse a proposta radical apresentada pela Índia e África do Sul na Organização Mundial do Comércio (OMC), a Janssen poderia repensar seus enormes investimentos multibilionários em pesquisa e desenvolvimento (P&D) na Bélgica [Nota da SyF: a vacina da Janssen foi retirada do mercado dos EUA e de outros países devido aos efeitos colaterais graves].

A proposta que provocou esse medo, conhecida como a isenção do ADPIC, teria permitido que alguns dos direitos de propriedade intelectual (PI) sobre os produtos da Covid-19 fossem rescindidos durante a pandemia. A intenção era dar às empresas que quisessem produzir vacinas e tratamentos “total liberdade para operar”, explicou um funcionário de um país que co-patrocinou a proposta.

Mas as grandes farmacêuticas disseram que uma isenção prejudicaria o investimento e a inovação e os países ricos, principalmente os membros da UE e do Reino Unido, se opuseram argumentando que não seriam reduzidas as enormes diferenças na disponibilidade de vacinas entre países ricos e pobres.

O POLITICO e o Escritório de Jornalismo Investigativo (BIJ) podem explicar como os negociadores atenuaram e frustraram essa proposta até que ela foi finalmente aprovada por governos desesperados para salvar um projeto decadente. Por meio de entrevistas com diplomatas, autoridades, lobistas e ativistas, bem como por meio de reuniões e documentos internos, pudemos descobrir quem foi o principal responsável pelo cancelamento da isenção.

As grandes farmacêuticas usaram seu enorme poder de lobby e influência para tentar acabar com uma proposta que ameaçava os princípios fundamentais de suas indústrias. Seus principais executivos tiveram acesso direto a altos funcionários da UE que se opuseram à proposta desde o início e encorajaram países membros relutantes, como Itália e França, a se alinharem.

E conforme relatado pelo The Intercept dos EUA, após uma dramática intervenção tardia em favor de uma isenção da vacina oito meses após a apresentação da proposta, a mesma parou quando o governo Biden foi pressionado pela indústria e o Congresso.

Quando um compromisso foi finalmente alcançado, seu valor foi questionado. O resultado – uma pequena mudança em um aspecto dos direitos de propriedade intelectual – foi considerado como “inútil” por um diplomata baseado em Genebra e ficou muito aquém do brilhante exemplo de solidariedade global que a OMC pretendia.

Victor do Prado, que até o início deste ano era um alto funcionário da OMC, disse que era difícil prever se a isenção teria impulsionado a produção, mas chamou a resposta à proposta como sintomática de uma “resposta unilateral e nacionalista” a pandemia de Covid-19.

“Este é um problema global. Uma solução global é necessária e uma solução global requer de cooperação”, afirmou. “Uma isenção poderia ter incentivado essa cooperação.”

Winnie Byanyima, co-presidenta da organização sem fins lucrativos People’s Vaccine Alliance e diretora executiva do UNAIDS, o programa de HIV das Nações Unidas, chamou as descobertas do POLITICO e do Escritório de Jornalismo Investigativo de “extremamente sérias” e pediu para continuar investigando.

Aceite a ligação
Os conselheiros do governo não são alheios a telefonemas e e-mails de grupos de pressão (lobistas). O conselheiro belga trabalhou com o primeiro-ministro do país, Alexander De Croo, e durante a pandemia de covid-19 atendeu a vários telefonemas de representantes das empresas farmacêuticas. Eles estavam ansiosos para explicar por que achavam que uma isenção afetaria seus investimentos em P&D. Mas, a chamada de Janssen se destacou das outras.

Como outras grandes empresas farmacêuticas, a J&J se opôs à isenção alertando publicamente que abrir a produção de vacinas para “fabricantes inexperientes” poderia minar a segurança do consumidor.

A Bélgica, um dos centros europeus da indústria farmacêutica, também se opôs à isenção. Mas parece que a Janssen estava preocupada com a possibilidade de que o posicionamento do país mudasse, possivelmente, depois que alguns políticos belgas pareciam receptivos à proposta.

Pouco depois que a ministra da Cooperação para o Desenvolvimento da Bélgica, Meryame Kitir, aparecesse na televisão para apoiar a remoção das proteções IP das vacinas no final de abril de 2021, a assessora recebeu uma ligação do porta-voz de relações públicas da Janssen.

“Eles me disseram: ‘Se a Bélgica apoiar isso, a sede [da J&J] em Nova Jersey ficará inquieta e poderá rever o orçamento de P&D [pesquisa e desenvolvimento]'”, disse o consultor ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo. A Janssen se autodenomina o maior investidor privado em P&D do país, tendo investido € 1,54 bilhões em 2019.

Nove dias após a aparição de Kitir na televisão, o governo Biden deu uma virada impressionante de 180 graus ao anunciar que apoiaria uma isenção limitada para as vacinas Covid-19. O primeiro-ministro belga respondeu convocando uma reunião de gabinete na qual deixou claro que o país não seguiria o mesmo exemplo.

O assessor insistiu que a ligação dos lobistas da Janssen não mudou a posição da Bélgica e que tais conversas eram “típicas de todos os lobistas”. A Bélgica acreditava que uma isenção poderia ter dado um pequeno impulso à produção de vacinas – não mais do que 10% – e que não valia a pena interromper a indústria farmacêutica do país, incluindo a P&D nas universidades.

O gabinete de De Croo disse: “O governo belga nunca tomou nenhuma decisão ou foi forçado a tomar uma decisão sobre a produção de vacinas contra a covid-19 sob pressão da indústria farmacêutica, nem sobre patentes ou sobre qualquer outro aspecto relacionado com esta questão”.

A J&J negou que tal conversa tenha ocorrido e disse que não representa a posição da empresa. No entanto, ela manifestou preocupação com o uso crescente de licenças compulsórias – licenças emitidas por um governo para permitir que uma empresa que não seja a detentora da patente fabrique um produto – “principalmente para favorecer as indústrias nacionais”.

“[O uso de licenças compulsórias] ameaça o sistema geral de PI que facilitou o desenvolvimento de medicamentos que hoje salvam a vida de milhões de pacientes e, no futuro, podem desenvolver novas terapias para outros milhões de pessoas”.

O assessor chamou o porta-voz de “muito baixo na escada” da J&J, dizendo que eles atenderam a ligação com alguma descrença. “Isso foi negociado com a sede de Nova Jersey? Acho que não. É apenas uma maneira barata de mostrar seu ponto de vista rapidamente? Sim, provavelmente”.

No final, eles estavam tão “fartos” de receber ligações de lobistas de empresas farmacêuticas sobre a isenção que simplesmente deixaram de atender. “Toda vez que eles traziam o assunto da propriedade intelectual de novo, eu dizia: ‘Olha, nós já tomamos uma decisão. Essa foi a nossa posição desde o início. Não vejo como algo importante poderia mudar isso”, disse o assessor.

“Toda a discussão sobre PI durou tanto tempo que, no final, simplesmente ignorei suas ligações.”

Colocar pressão
O relato acima ecoa o de outras pessoas ao redor do mundo. Um funcionário indonésio disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que em 2020, quando o país estava em negociações com outra empresa farmacêutica sobre um medicamento para a covid-19, a empresa fez lobby na Indonésia por sua posição sobre a isenção. A “punição” foi reduzir o investimento, disse o responsável.

Essa pressão atrasou a decisão da Indonésia de co-patrocinar a isenção. Não o fez até maio de 2021, depois que grupos da sociedade civil e empresas farmacêuticas indonésias instaram o governo a apoiá-la.

Às vezes, a indústria nem precisava fazer tais ameaças. Vários funcionários de países que não receberam pressão direta de empresas farmacêuticas disseram que seus países levaram as grandes empresas farmacêuticas em consideração ao estabelecer suas posições sobre a isenção.

Por exemplo, o governo colombiano pediu a seus funcionários baseados em Genebra que não apoiassem a isenção para evitar interromper as negociações de vacinas com a Pfizer e outras empresas, segundo duas pessoas familiarizadas com as negociações.

Quando as vacinas contra a covid-19 chegaram pela primeira vez no final de 2020 eram “como ouro puro”, disse um deles. Mas países de baixa e média renda como a Colômbia tinham pouco poder, então as negociações eram unilaterais. (No início de 2021, o Escritório de Jornalismo Investigativo informou que a Pfizer estava chantageando alguns países latino-americanos, pois o fabricante da vacina pedia aos governos que colocassem ativos soberanos como garantia contra futuros processos judiciais.)

Uma das pessoas disse que a Colômbia reteve seu apoio à isenção porque estava em negociações. “Não queríamos que a isenção interferisse no fechamento [desses negócios]”.

A Colômbia começou a distribuir vacinas em fevereiro de 2021. Grupos da sociedade civil aumentaram a pressão sobre o governo para apoiar a isenção e a reversão de Biden em maio de 2021 mudou as coisas. A Colômbia começou a apoiar oficialmente a isenção em dezembro de 2021. “Percebemos que não fazia sentido continuar usando uma estratégia muito conservadora”, disseram.

Um porta-voz do governo colombiano disse que instruiu seus representantes na sede da OMC, em Genebra, a apoiar a posição dos países em desenvolvimento sobre a isenção dos ADPIC.

O México também estava de olho nas grandes empresas farmacêuticas. Ele não apoiou a isenção porque acreditava que as licenças compulsórias e os acordos voluntários entre empresas farmacêuticas e fabricantes terceirizados funcionariam melhor. Contudo, o país sabia que apoiar a isenção poderia prejudicar o investimento, disse uma autoridade mexicana ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo.

“O México protege bem a propriedade intelectual”, disse. “Isso realmente ajuda para investir no país… Por isso dissemos ‘não’ [à isenção].”

Proteger a propriedade intelectual é um “bom incentivo” para a indústria farmacêutica compartilhar seu conhecimento, disse o funcionário. “Acho que é um pouco de bom senso. Você não vai investir em um país se o mesmo não pude protegê-lo”, acrescentou.

Conversações entre grupos de pressão
Durante os primeiros meses da pandemia, a possível escassez de produtos contra a covid-19 – equipamentos de proteção, possíveis tratamentos e eventuais vacinas – foi uma das principais preocupações das autoridades de saúde em todo o mundo.

Em Bruxelas, os responsáveis da Comissão Europeia – incluindo a comissária da Saúde Stella Kyriakides e o comissário do Mercado Interno Thierry Breton – participaram em 12 reuniões sobre o tema com a Federação Europeia das Associações e Indústrias Farmacêuticas (European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations ou EFPIA), um grupo de pressão.

Porém, Suíça, Índia e África do Sul não apresentaram à OMC sua proposta radical de abrir mão de certos aspectos do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC), até outubro.

No entanto, a indústria farmacêutica já estava se movimentando para proteger os direitos de propriedade intelectual. Alguns dias antes da apresentação da isenção dos ADPIC, a EFPIA se reuniu com um membro do gabinete do Presidente da Comissão Europeia para discutir a estratégia farmacêutica da UE e sua abordagem à PI dos produtos farmacêuticos.

Assim, quatro dias após a apresentação da proposta, a EFPIA voltou a reunir-se com a Comissão e desta vez com um membro do Gabinete do Comissário da Concorrência responsável pelo Comércio, Nele Eichhorn.

Não há atas dessas reuniões, mas executivos da indústria farmacêutica disseram publicamente que a isenção seria desastrosa para pesquisa e desenvolvimento. Segundo a Reuters, Albert Bourla, presidente-executivo da Pfizer, declarou logo após a proposta de isenção que a propriedade intelectual é “essencial para o setor privado”. O IP disse que é “o que forneceu uma solução para esta pandemia e agora não é mais uma barreira”.

A União Europeia foi um dos aliados naturais das grandes empresas farmacêuticas (Big Pharma) desde o início. Ela é um baluarte do moderno sistema de PI e, como tal, uma potência farmacêutica. Em 2020, 24% das vendas farmacêuticas globais foram feitas na Europa.

A UE definiu sua posição assim que a isenção foi proposta pela primeira vez. Em outubro de 2020, ela afirmou que um forte sistema de IP era crucial para garantir que a indústria fosse “adequadamente incentivada e recompensada” pelo desenvolvimento de vacinas e tratamentos contra a covid-19, e que não havia “nenhuma indicação” de que o IP fosse uma barreira para isso.

A indústria tinha investido mais de € 39,6 bilhões em P&D na região em 2020 e, nos dois anos seguintes, gastou dezenas de milhões a mais para fazer lobby com as principais autoridades da UE em questões relacionadas à Covid-19, mostra a análise.

Tabela com o número de reuniões entre grandes empresas e funcionários da Comissão Europeia (ver no original)

Os dados dos grupos de pressão mostram como as empresas farmacêuticas, juntamente com os principais grupos de lobby que representam a indústria, tiveram amplo acesso aos mais altos funcionários em Bruxelas e Londres, onde os políticos do Reino Unido se opuseram à isenção durante os 20 meses de negociações.

Um porta-voz do governo disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que o Reino Unido queria um resultado que abordasse a desigualdade da vacina “sem minar as regras existentes de proteção à propriedade intelectual”.

Entre janeiro de 2020 e setembro de 2022, 13 empresas e grupos que faziam lobby por empresas farmacêuticas realizaram quase 100 reuniões com os mais altos funcionários da Comissão. No Reino Unido, eles tiveram mais de 360 reuniões entre janeiro de 2020 e março de 2022, o que equivale a quase uma a cada dois dias. Boris Johnson participou pessoalmente de 11 delas.

Embora algumas das reuniões estivessem diretamente relacionadas à pandemia e às vacinas, muitas não estavam. Mas o número cumulativo de reuniões é indicativo da interação frequente e próxima que o setor mantinha com altos funcionários.

Essas são apenas as reuniões sobre as quais as informações estão disponíveis publicamente. Os ministros do Reino Unido são obrigados a divulgar publicamente as reuniões oficiais com organizações externas, mas os funcionários de um escalão inferior não. Em Bruxelas, as comunicações informais, como telefonemas improvisados, não precisam ser incluídas nos registros de transparência.

Tabela com o Número de reuniões com ministros do Reino Unido (ver original)

As empresas farmacêuticas poderiam facilmente organizar ligações e reuniões com os mais altos funcionários do governo. Figuras do setor, como Bourla, tiveram acesso a altos cargos políticos como ficou evidenciado pelas mensagens de texto que ele trocou com Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e relatadas pela primeira vez pelo New York Times.

O conteúdo das mensagens permanece desconhecido. A Defensoria de Justiça Europeia, Emily O’Reilly, disse em julho que a resposta da Comissão ao pedido de um jornalista para ver os textos equivalia a “má administração”. (Em setembro, o Tribunal de Contas Europeu acusou á Comissão de se recusar a divulgar detalhes sobre o papel pessoal de von der Leyen nas negociações da Pfizer sobre vacinas).

A Comissão insiste que os textos são documentos “efêmeros e de curta duração”, não são preservados e “em geral não contêm informações importantes sobre as políticas, atividades e decisões da Comissão”.

Um porta-voz da Pfizer disse que “a Pfizer discutiu abertamente sua posição com todas as partes interessadas, explicando o impacto negativo que o enfraquecimento da proteção à propriedade intelectual por meio de mecanismos como a isenção dos ADPIC teria no acesso equitativo e no atendimento ao paciente”.

“Negamos categoricamente qualquer alegação de que a posição de um país individual sobre a isenção dos ADPIC esteja de alguma forma relacionada às negociações do contrato de vacina com a Pfizer. Sugerir o contrário é impreciso, enganoso e irresponsável.”

Desperdício de dinheiro
A indústria gastou milhões fazendo lobby na UE durante a pandemia. Na UE, durante 2021, as empresas que desenvolveram as vacinas e tratamentos contra a covid, incluindo a Pfizer, a Moderna e os maiores lobistas farmacêuticos, incluindo a EFPIA, pagaram pelo menos 15 milhões de euros aos lobistas. No ano anterior, as empresas gastaram mais de 15,7 milhões de euros. Em 2019, seus gastos com lobby foram de € 13,9 milhões, de acordo com os dados da LobbyFacts que analisamos. Informações semelhantes não estão disponíveis para o Reino Unido.

Desenho dos contatos entre a indústria farmacêutica e os políticos
Além disso, as principais indústrias também pagaram pelo menos 31 consultorias privadas para fazer lobby junto à Comissão em seu nome. A AstraZeneca e a J&J, em 2021, gastaram cerca de € 700.000 cada uma em consultorias relacionadas a temas como a política de vacinas da UE e a estratégia do bloco para gerenciar a covid-19.

Os grupos da sociedade civil que apoiaram a isenção também fizeram lobby, mas tinham apenas uma fração dos imensos recursos que a indústria pode usar. Uma análise do lobby no campo da saúde das 105 organizações que apoiam a People’s Vaccine Alliance, juntamente com Médicos Sem Fronteiras, mostra cerca de 60 reuniões com altos funcionários da Comissão, por volta de dois terços das que a indústria farmacêutica teve. No Reino Unido foram realizadas 20 reuniões.

Tabela com o dinheiro que as grandes empresas gastam com lobby na Europa (veja no documento original)

Um porta-voz da instituição de caridade STOPAIDS disse que o governo do Reino Unido levou “semanas e meses” para responder a e-mails para marcar uma “breve reunião ocasional”. Falando de uma recente reunião “unilateral” sobre os tratamentos para a Covid-19, ele acrescentou: “É difícil não concluir que o envolvimento do governo com organizações da sociedade civil para discutir sua abordagem às negociações de isenção dos ADPIC foi meramente simbólico”.

Em pelo menos um caso, funcionários baseados em Genebra estiveram em contato próximo com um fabricante de vacinas para garantir que seja o que for acordado na OMC não afetasse adversamente sua produção.

Também conversamos francamente com os acadêmicos de Oxford que estavam projetando o produto e perguntamos a eles: “Como [a isenção] os afetaria?” disse um diplomata de Genebra próximo às negociações.

Hyo Yoon Kang, professor de Direito da Escola de Direito da Universidade de Warwick, disse: “Parece que a Comissão achou muito caro proteger os direitos de propriedade intelectual maximalistas de algumas corporações farmacêuticas. Eles o fizeram à custa do interesse público global e europeu, no auge de uma pandemia mundial”.

“Isso estabelece um precedente politicamente indesejável para a preparação de futuras pandemias porque as mesmas barreiras de PI impedirão o acesso equitativo às tecnologias de saúde no futuro”.

Como os resumos registrados das reuniões geralmente são imprecisos é impossível saber exatamente em quantas reuniões entre a indústria farmacêutica e os altos funcionários da UE se falou sobre a isenção. Uma delas, por exemplo, era sobre “estratégia farmacêutica” enquanto outra era sobre “vacinas”. Contudo, algumas reuniões ocorreram em momentos-chave do calendário negocial.

A UE disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo: “A UE tem estado na vanguarda das decisões sobre a resposta da OMC à pandemia de covid-19. Desde o início da pandemia afirmou repetidamente que o acesso justo ás vacinas e á produção equitativa delas era crucial para combater a pandemia, especialmente em regiões como a África que dependem da importação de produtos farmacêuticos”.

Acrescentaram que a proteção da propriedade intelectual é “parte da solução” para as vacinas contra a Covid-19 porque incentiva a inovação e o investimento, também, nos países em desenvolvimento.

Sem palavras
Em maio de 2021, os EUA, que se opuseram à isenção durante as primeiras reuniões, voltaram atrás chocando muitos delegados da OMC. Demorou dois dias para os lobistas farmacêuticos do Reino Unido, juntamente com a Pfizer e a MSD, se encontrarem com o ministro de política comercial do Reino Unido, Greg Hands, o ministro de vacinas, Nadhim Zahawi e a secretária de comércio internacional, Liz Truss.

Em Bruxelas, 12 dias depois que os EUA inverteram sua posição, a EFPIA se reuniu com três membros do gabinete do comissário de Comércio da UE, Valdis Dombrovskis, para discutir a política de vacinas do bloco. No mês seguinte, Médicos Sem Fronteiras, Health Action International e Human Rights Watch se reuniram com dois membros do gabinete de Dombrovskis para discutir sobre o comércio em relação aos produtos da covid-19.

No final de outubro de 2021, quando uma importante conferência ministerial da OMC se aproximava, Pfizer, Sanofi e EFPIA se reuniram com membros do gabinete de Dombrovskis para discutir questões relacionadas ao comércio. No início do mês, Médicos Sem Fronteiras, Health Action International e Human Rights Watch também se reuniram com um membro de seu gabinete.

No final de novembro, apenas quatro dias antes da planejada conferência cujo tema central era a isenção dos ADPIC, von der Leyen reuniu-se com os executivos da Moderna e da Pfizer. Os Médicos Sem Fronteiras também se reuniriam com o próprio Dombrovskis, naquele mesmo mês, para discutir o acesso global a vacinas e medicamentos contra a covid-19.

A conferência acabou sendo adiada e o debate sobre a isenção continuou até 2022. Foi quando a UE, os EUA, a Índia e a África do Sul se reuniram em um pequeno grupo para discutir a isenção conhecida como a “Quadrilateral” (Quad), em uma tentativa de desbloquear a situação. O lobby farmacêutico continuou.

Um lobista de alto nível da indústria disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que eles tinham “alguma relação com altos funcionários” nos EUA, “que indicaram que seu interesse era proteger os interesses dos EUA”. Porem, quando ficou claro que sua mensagem não afetava a posição dos EUA, eles voltaram sua atenção para a Europa, incluindo o Reino Unido, que consideravam mais receptivos.

Em cinco de março de 2022, no auge das discussões no Quad, a Câmara de Comércio dos Estados Unidos se reuniu com a Comissão, segundo documentos obtidos pelo POLITICO e o Escritório de Jornalismo Investigativo, em resposta a pedidos de liberdade de informação. A reunião contou com a presença de defensores da indústria farmacêutica dos EUA PhRMA e BIO, bem como Pfizer, Eli Lilly e MSD.

De acordo com os detalhes do encontro, os americanos “expuseram sua preocupação geral com a proposta de isenção” que poderia colocar em risco a pesquisa e a inovação.

E no Reino Unido, dois dias após o vazamento de um documento de posição da Quad relatado pelo POLITICO em meados de março, o lobby de biotecnologia do Reino Unido se reuniu com o ministro da Ciência, George Freeman, “para discutir a propriedade intelectual e o setor de ciências da vida”.

Um mês antes da reunião ministerial de junho, na qual foi decidido o resultado final, os Médicos Sem Fronteiras se reuniram com um membro da equipe de Dombrovskis para discutir a isenção. Mas, o acesso da indústria excedeu em muito o acesso obtido por grupos da sociedade civil.

Thomas Cueni, Diretor Geral da Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (International Federation of Pharmaceutical Manufacturers & Associations), disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo

que era legítimo que a indústria farmacêutica “contribuísse para os debates políticos” porque era “um dos principais atores na resposta à pandemia”.

Ele acrescentou que a federação “forneceu exemplos de desafios concretos enfrentados pelas empresas, aumentando a conscientização sobre os obstáculos e instando os tomadores de decisão a enfrentá-los”.

A People’s Vaccine Alliance, uma coalizão de mais de 100 organizações que fazem campanha pelo acesso gratuito e universal a vacinas e tratamentos contra a Covid-19, declarou: “As opiniões de especialistas em saúde, especialistas comerciais, instituições de caridade, sindicatos, cientistas, profissionais de saúde, agências da ONU e até mesmo o Parlamento Europeu foram dispensadas em favor do poderoso lobby farmacêutico. Simplificando, o dinheiro fala.”

Ouvido da Comissão
Afinal, o lobby pode ter sido desnecessário. Ao longo das negociações, a Comissão se opôs veementemente a uma ampla isenção dos direitos de propriedade intelectual, conforme proposto pela África do Sul e pela Índia. A UE sustentou que a propriedade intelectual não era uma barreira ao acesso das vacinas e, mesmo que fossem, os mecanismos existentes, como licenças compulsórias, poderiam ser usados para superar quaisquer barreiras à produção.

Contudo, em reuniões privadas ficou claro que essa oposição não era apenas sobre a pandemia de covid-19 ou se uma isenção impulsionaria a produção. Em parte, tratava-se de proteger o futuro do sistema de propriedade intelectual.

Na reunião do Conselho do Comitê de Política Comercial da UE em novembro de 2021, a Comissão alertou que, se as autoridades aceitassem “que a proteção da propriedade intelectual era um problema logo enfrentariam demandas semelhantes para outros produtos”, segundo documentos revisados pelo POLITICO e o Escritório de Jornalismo Investigativo e a Corporate Europe Observatory, um grupo de pesquisa focado na influência das corporações.

Em outra reunião no mesmo mês, a Alemanha exigiu “apoio unânime” à posição da EU porque era importante “para combater o risco de futuras flexibilizações dos ADPIC ou mesmo a perda de direitos de propriedade intelectual”.

Um diplomata baseado em Genebra, cujo país é um centro farmacêutico europeu, disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que “Eles não queriam abrir [a caixa de Pandora]”. “Você não precisa estabelecer precedentes porque uma vez que você comece a reconhecer a propriedade intelectual haverá mais crises de saúde e mais doenças.”

Os países da UE adotaram a mesma posição em relação à OMC, mas surgiram divisões entre eles em torno de sua posição em relação à isenção. No final de 2021, a Áustria, a Holanda e a Bélgica fizeram lobby repetidamente para que a UE permanecesse aberta para suavizar as regras internacionais de propriedade intelectual.

Isso ecoou nas divisões públicas entre os membros da UE. Emmanuel Macron apoiou a isenção em 2021 com o ministro da Saúde italiano, Roberto Speranza, chamando o apoio dos EUA ao acesso aberto às patentes de vacinas como um “desenvolvimento importante”. O primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, também disse que seu país está aberto à ideia.

Ambas as nações acabaram voltando atrás: Speranza rapidamente percebeu que a propriedade intelectual não atrapalhava a produção de vacinas, segundo um membro de sua comitiva, e em janeiro de 2022, Macron ficou do lado da UE. Ele disse aos legisladores europeus que a França era a favor da proposta, mas que era “fácil para a França ser a favor porque não temos patentes… porque não foram as empresas farmacêuticas francesas que descobriram as vacinas”.

Ele rejeitou a ideia de encerrar as patentes com a isenção e propôs, em vez disso, uma “licença global” para vacinas contra a covid-19 para melhorar o acesso.

A Alemanha foi um grande impulsionador da posição da EU. No comitê de política comercial, sua oposição direta a uma isenção foi consistentemente apoiada por países como Irlanda, Suécia e Dinamarca. Esses três países também abrigam grandes indústrias farmacêuticas: a Irlanda é o maior exportador líquido de produtos farmacêuticos da EU. Em valor, os produtos farmacêuticos são a segunda categoria de exportação da Suécia e representam quase um quinto das exportações totais da Dinamarca, de acordo com representantes da indústria.

Na OMC, a Alemanha trabalhou em estreita colaboração com o Reino Unido e a Suíça, mas também com os EUA, de acordo com dois diplomatas baseados em Genebra.

O governo alemão sempre considerou a propriedade intelectual crucial para impulsionar a inovação na economia nacional, disse uma autoridade alemã ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo. Embora a BioNTech tenha ajudado a Alemanha a controlar a pandemia e abastecer o mundo, nenhuma vacina estava disponível no mercado de outros países. “Talvez isso tenha tornado mais fácil para [outros] mostrar flexibilidade política” disse o funcionário, sugerindo que a posição da Alemanha foi parcialmente influenciada pelo sucesso da BioNTech.

Um porta-voz do governo alemão confirmou que “teve conversações com organizações não governamentais, associações industriais e empresas afetadas, incluindo a BioNTech”. Eles acrescentaram que “as associações da indústria citaram a importância de proteger os direitos de propriedade intelectual”.

Koen Berden, diretor executivo de assuntos internacionais da EFPIA, disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que os países membros da UE que se beneficiam financeiramente de uma grande indústria farmacêutica – como Alemanha, Bélgica, Itália, França e Dinamarca – estão “muito interessados” em dimensionar o possível impacto da isenção.

Acrescentou que cerca de metade das reuniões que a EFPIA teve com a Comissão, entre janeiro de 2020 e julho de 2022, “não foram relacionadas com a covid-19 e incidiram sobre outras áreas da política de medicamentos da UE e foram muitas vezes realizadas a pedido da Comissão Europeia ou do Parlamento”.

O diplomata baseado em Genebra disse: “Temos grandes empresas farmacêuticas… e é muito difícil desistir [da propriedade intelectual] porque é crucial para seu modelo de negócios”.

O diplomata criticou a linha dura inicial da Comissão à proposta de isenção por ser muito técnica. “Faltou liderança política… Há uma emergência de saúde, há uma questão de solidariedade e de uma mensagem política para o mundo em desenvolvimento e a África em particular.”

A Comissão e seus países membros estavam preocupados em como a oposição a uma isenção seria percebida já que milhões de pessoas morreram de covid-19. A Alemanha incentivou a “comunicação inteligente sobre o assunto” que “sublinharia o papel proativo da UE no fornecimento de vacinas globalmente”.

Quando países como a Bélgica, a Finlândia e a Espanha expressaram preocupação de que a UE pudesse ser vista a partir de uma “perspectiva errada”, a Comissão prometeu trabalhar com os meios de comunicação e preparar um documento informativo para os países membros, acrescentando que era “importante que, em seguida, os políticos iriam assumi-lo e usá-lo”.

Isso e as mudanças de opiniões de Macron e Speranza sugerem que a Comissão conseguiu controlar os países que podem discordar e alinhar os países membros para apoiar uma posição única contra a isenção, enquanto ditava mensagens aos políticos para suas coletivas de imprensa.

Contudo, como Bruxelas estava tão empenhada em mostrar que a enfraquecida OMC poderia aportar resultados, ela se tornou uma das forças motrizes por trás dos debates do Quad. Segundo uma fonte da UE, a iniciativa de Bruxelas para tentar quebrar o impasse foi uma grande surpresa para os EUA, que não esperavam que a UE mudasse a sua postura totalmente oposta à isenção e que subitamente revelou que não tinha uma estratégia clara.

Ngozi Okonjo-Iweala, diretor-geral da OMC, também foi fundamental para estabelecer as discussões do Quad. A OMC considerou que o fracasso em chegar a um acordo sobre os ADPIC, bem como sobre outras questões relacionadas ao comércio, poderia arruinar sua reputação internacional. Okonjo-Iweala alertou, em junho de 2022, que o fracasso em chegar a um acordo sobre os ADPIC e outras questões comerciais acarretaria custos “substanciais” para os distintos países.

“Acho que isso significaria… o fim da OMC”, disse um funcionário comercial de Genebra ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo.

O grande dia dos EUA
Em maio de 2021, as negociações chegaram a um impasse. África do Sul, Índia e os 62 co-patrocinadores da isenção – incluindo os 44 países do Grupo Africano – ainda queriam uma isenção ampla. A UE, o Reino Unido, a Suíça e outros países mantinham-se firmes.

A decisão dos EUA de anunciar seu apoio a uma isenção limitada às vacinas – ou seja, excluir os tratamentos da covid-19 – poderia ter sido o momento de conseguir uma mudança.

O anúncio feito por Katherine Tai, representante comercial dos EUA, em cinco de maio de 2021, deixou claro que os EUA “acreditavam fortemente nas proteções à propriedade intelectual, mas, para acabar com esta pandemia, apoiam a isenção a essas proteções para vacinas contra a covid-19”. Tai disse que os EUA “participariam ativamente das negociações baseadas em texto” na OMC para garantir a isenção ás proteções de propriedade intelectual para as vacinas.

Isto se reafirmou em novembro escrevendo em uma carta aos senadores que “a decisão de apoiar a isenção de proteções de PI para as vacinas contra a covid-19 reflete as circunstâncias extraordinárias desta pandemia”.

Nenhuma das dezenas de pessoas que falaram com o POLITICO e o Escritório de Jornalismo Investigativo esperavam essa postura de um país que já foi a força motriz por trás do estabelecimento de direitos internacionais de propriedade intelectual. Como resultado, os delegados da OMC queriam reavaliar suas próprias posições. Finalmente, encorajados pela posição dos EUA, países como a Colômbia apoiaram a isenção e a Austrália citou a mudança de posição dos EUA quando apoiou a isenção em setembro de 2021.

Alguns disseram que parecia que uma isenção era realmente possível devido a influência dos EUA na OMC. “Ficamos muito surpresos quando eles apoiaram a isenção”, disse um funcionário de um país que se opôs à isenção. “Uma vez que você tem o apoio dos EUA, isso lhe dá muita força… ganhou força.”

Contudo, nos meses que se seguiram ao anúncio de Tai, os EUA não apoiaram sua retórica pública. Por mais de um ano após o anúncio ter sido feito, as autoridades americanas em Genebra não disseram quase nada de novo no Conselho dos ADPIC. “O que experimentamos foi que os EUA estavam muito, muito desengajados”, disse um funcionário envolvido nas negociações ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo. “Eles repetiram as mesmas declarações… durante meses.”

Apesar de os EUA terem apoiado uma isenção e prometido ser “ativos” nas negociações, não apresentaram nenhuma proposta concreta. Isso contrasta com a UE, que um mês após o anúncio de Tai em junho de 2021 propôs uma alternativa à isenção que se concentrava na mudança das regras sobre licenças compulsórias.

A pergunta feita pelos observadores era por que os EUA, se realmente queriam uma isenção, não apresentaram sua própria solução. Um funcionário do escritório de comércio dos EUA disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que “já havia suficientes assuntos sobre a mesa” para discutir.

Outro fator, disseram eles, foi que “as partes interessadas tinham posições muito diferentes sobre o assunto”, o que dificultou a elaboração do texto da proposta. “De um lado estão as empresas farmacêuticas, que obviamente não querem isso, e do outro a comunidade de ONGs, que estão pressionando para que outras coisas sejam feitas. E temos todo tipo de gente no meio”.

Alguns desses “tipos de pessoas” eram os republicanos do Congresso, que exigiam que Biden abandonasse seu apoio.

O funcionário disse que o motivo pelo qual os EUA apoiaram publicamente uma isenção foi, em primeiro lugar, para “promover e facilitar a produção de vacinas” e, em segundo lugar, para “facilitar o diálogo” sobre a isenção. Ao contrário de outros funcionários que falaram com o POLITICO e o Escritório de Jornalismo Investigativo, eles caracterizaram o resultado final como uma “isenção”, e também, como um “meio termo” entre apoiadores e opositores da proposta inicial.

Quanto aos detalhes do que os EUA haviam previsto quando anunciaram seu apoio a uma isenção, o funcionário foi vago. “O que queríamos era, antes de tudo, ter uma conversa baseada nos fatos e no que é necessário para promover e facilitar a produção de vacinas em áreas onde elas não estão disponíveis atualmente”, disse.

A UE observava os EUA com preocupação. Em uma reunião do Comitê de Política Comercial em novembro, a posição dos EUA foi vista como o “maior risco” para a UE, enquanto em outra reunião no mesmo mês a Comissão disse que havia um “grande perigo” de que os EUA anunciassem sua posição durante uma importante conferência a ser realizada nas próximas semanas e que os EUA poderiam pressionar por “uma isenção total para vacinas”.

Em outro debate, a Itália pediu uma “abordagem tática” se os EUA apresentassem uma proposta de isenção limitada. A UE acreditava que se sofresse uma pressão suficiente poderia ser forçada a aceitar uma renúncia. “O pior cenário imaginável é que a UE fique isolada e pressionada a aceitar um resultado inaceitável”, disse ele em uma reunião do comitê, referindo-se, entre outras coisas, à isenção.

Adeus à isenção
Qual foi o resultado de meses de reuniões e conversas? Nada parecido á isenção que a África do Sul e a Índia propuseram originalmente, mas muito mais próxima da contraproposta da própria UE em 2021. Esclarece algumas das flexibilidades existentes nos ADPIC e dá aos países mais liberdade para exportar vacinas contra a covid-19 fabricadas sob licenças compulsórias.

James Love, diretor da Knowledge Ecology International e consultor de agências e governos da ONU, escreveu em junho: “É melhor descrita como uma exceção temporária e limitada às restrições de exportação e não como uma isenção”. Ele acrescentou que a decisão só seria útil se um país em desenvolvimento passasse pelo longo processo de emissão de licença compulsória, obtenção de aprovação regulatória para uma vacina, fabricação e exportação.

Um porta-voz da OMC disse que o resultado foi bem recebido por muitos países, incluindo Índia e África do Sul, o que é “uma prova do amplo apoio que a decisão recebeu e o reconhecimento de que desempenhará um papel importante na obtenção de equidade e disponibilidade de vacinas”.

Em Genebra, os delegados têm até dezembro para decidir se estendem esse acordo limitado e recém-negociado a tratamentos e testes de diagnóstico, e isso pode se transformar em outra briga. As implicações de estender a isenção são potencialmente enormes, dado que os medicamentos costumam ser mais fáceis de produzir do que as vacinas.

Diante desse cenário, em sete de julho, um funcionário do departamento de comércio da Comissão Europeia enviou um e-mail à Pfizer solicitando mais informações sobre “a posição da indústria sobre as terapias contra a covid”.

“As discussões sobre esse assunto já estão começando em Genebra, então seria muito útil começar com alguns fatos básicos”, escreveu o funcionário em um e-mail obtido pelo POLITICO e o Escritório de Jornalismo Investigativo por meio de um pedido de divulgação.

O funcionário da Pfizer respondeu que a EFPIA estava coletando esse material. Os dados foram divulgados em setembro, descrevendo o pesadelo que a indústria acreditava estar chegando. A análise da indústria mostrou que 135.627 patentes de medicamentos e testes de diagnóstico seriam diretamente afetadas. De acordo com esse grupo de lobby, uma isenção de três anos também causaria uma queda de 25% em pesquisa e desenvolvimento em países de alta renda.

Os EUA, que apoiaram uma isenção apenas para vacinas contra a covid, ainda não haviam se posicionado sobre tratamentos e terapias quando o POLITICO e o Escritório de Jornalismo Investigativo entrevistaram o principal funcionário do comércio. No ano passado, seu apoio se limitou a vacinas porque “naquela época… o importante era vacinar as pessoas e facilitar a produção de vacinas”.

Teme-se que haja uma repetição dos atrasos que afetaram as primeiras discussões. Um funcionário de um país de renda média baixa com sede em Genebra que apoiou a renúncia previu que não haveria decisão este ano por causa de quão inflexivelmente alguns países, principalmente o Reino Unido e a Suíça, se oporiam à flexibilização da propriedade intelectual dos tratamentos de covid-19. A Suíça disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que “não considera a propriedade intelectual um obstáculo ao acesso de diagnósticos e tratamentos de covid-19”.

Outro diplomata comercial baseado em Genebra disse que os EUA e a Alemanha “irão claramente cortar pela raiz… eles não cederão”.

Os 20 meses de negociações maltratadas têm implicações para as emergências de saúde, além da covid-19. “Claramente, há um problema no sistema”, disse Luke McDonagh, professor associado de direito da London School of Economics. “O Acordo sobre os ADPIC atende aos interesses dos países de alta renda e não faz quase nada pelos países de renda média-baixa”, disse, acrescentando que espera que a OMC reconheça a necessidade de restaurar esse equilíbrio.

Até o conselheiro belga reconheceu que “temos de continuar a falar” sobre o papel da PI. “Nós só temos que sentar à mesa quando as coisas se acalmarem e discutir, então, o que deu certo? O que deu errado?”

Os defensores da isenção não vão desaparecer. O funcionário do país de renda média baixa pediu vontade política para “desafiar o sistema” e garantir que os países em desenvolvimento estejam melhor preparados para futuras emergências. “As regras de PI são muito importantes, respeitamos e acreditamos nelas. Mas, também, queremos chamar a atenção para os problemas reais, as desigualdades e lacunas que temos e como o sistema pode ajudar.”

Outro funcionário, de um país latino-americano, disse que a negociação dos ADPIC gerou um debate mais amplo sobre o papel da PI em emergências de saúde, e que o limitado acordo obtido na OMC pode ser usado como referência em discussões futuras.

“Espero não experimentar outra pandemia”, disseram. “Mas se [eu fizer isso] e for jovem o suficiente para negociar, nesse ponto, poderei dizer o que fizermos com a covid. Demoramos muito. Chegou tarde demais. Mas já sabemos isso,” afirmaram.

Byanyima, diretora executiva do ONUSIDA, disse ao POLITICO e ao Escritório de Jornalismo Investigativo que ela continuaria a pressionar pela reforma das regras de propriedade intelectual e que as negociações sobre os ADPIC convenceram muitos países ricos que agora “aceitaram que a propriedade intelectual é uma barreira” para o acesso.

“Não foi nosso momento de maior orgulho, mas fizemos algum progresso”, disse.

Enquanto continua o debate sobre tratamentos e testes diagnósticos, ela afirma que os governos devem “agir com determinação e cumprir seu papel de quebrar o monopólio e permitir a troca de tecnologia, propriedade intelectual e conhecimento para que haja mais produção, não apenas [de] vacinas, mas de tratamentos e testes de diagnóstico em todo o mundo.”

“A covid foi o momento certo para essa mudança acontecer. Ainda não chegou. Mas posso dizer que vamos consegui-la mais cedo ou mais tarde.”

Leonie Kijewski, Carlo Martuscelli e Misbah Khan contribuíram para esta noticia.

Nota de Salud y Fármacos: no artigo original há gráficos bastante informativos e podem ser acessados a partir do link que aparece no cabeçalho, também há links para algumas referências.

creado el 11 de Mayo de 2023