O número de participantes de pesquisa feridos nos EUA não é contabilizado, e tampouco existem sistemas federais em vigor para ajudá-los.
A cada ano, centenas de milhares de americanos se voluntariam para participar de ensaios clínicos. Estes ingerem doses de medicamentos experimentais e se submetem a cirurgias desconhecidas. Alguns até permitem que médicos implantem dispositivos não testados em seus corpos.
A maioria dos ensaios acabam por ser perfeitamente seguros e, muitas vezes, dão a pacientes acesso a cuidados médicos inovadores. Porém, no raro caso em que algo dá errado no decorrer de um ensaio, é possível que a organização responsável pela pesquisa não tenha que assumir qualquer obrigação legal incluindo pagar as contas médicas de um voluntário, compensar salários perdidos ou oferecer qualquer outra assistência.
Trata-se de uma peculiaridade na legislação dos Estados Unidos que há muito tempo incomoda os bioeticistas: Em contraste a muitos outros países que fazem muita pesquisa clínica, as regulamentações nos EUA não garantem apoio a pessoas prejudicadas durante ensaios clínicos. Se um dispositivo experimental falhar, ou se um novo medicamento mandar um sujeito de pesquisa para o hospital – ou até pior – essa pessoa ou a sua família podem ser totalmente responsabilizadas por cuidados médicos e outras despesas.
“Uma pessoa se voluntaria como cobaia pelo benefício dos cidadãos de sua comunidade. E então, quando se machucam, dizemos: ‘Bem, o problema é seu, não nosso'”, disse Daniel Wikler, filósofo e professor da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard. “Mas que diabos?”
Especialistas não têm certeza do grau do problema – nem se representa de fato um problema. Não há uma única fonte que colete dados sobre quantas pessoas são feridas em ensaios clínicos conduzidos por pesquisadores nos EUA. Quando uma pessoa se machuca, às vezes ela recebe compensação adequada de seu próprio plano de seguro, por meio de acordos ad hoc ou por cláusulas implementadas voluntariamente por alguns patrocinadores de pesquisa. Outros obtêm apoio somente levando pesquisadores à justiça.
Porém, juristas e especialistas em ética que estudaram a questão afirmam que a atual estrutura para soluções não é suficiente, permitindo que algumas – ou até muitas – pessoas fiquem sem ajuda após sofrerem prejuízo ao longo de uma pesquisa biomédica.
Há décadas, especialistas em ética expressam suas preocupações com o sistema atual. O mesmo vale para vários painéis consultivos federais, incluindo uma comissão presidencial de 2011 que solicitou que o Departamento de Saúde e Serviços Humanos “agisse rapidamente para avaliar a questão”. Esses esforços pouco resolveram. “Nunca encontrei ninguém que tentasse defendê-lo”, disse o bioeticista Carl Elliott, da Universidade de Minnesota. “Mas nada muda.”
ENSAIOS GERALMENTE SÃO SEGUROS, porém as coisas podem dar errado. Às vezes, há negligência ou comportamento antiético envolvido. Às vezes, é apenas má sorte; mesmo os ensaios mais bem conduzidos estão sujeitos a resultados inesperados.
Desde a década de 1970, formuladores de política nos EUA têm promulgado regulamentações para proteger sujeitos em pesquisa humana, parcialmente em resposta às revelações preocupantes do agora infame experimento de Tuskegee. Por décadas, pesquisadores permitiram conscientemente que sífilis não fosse tratada em 399 homens negros, levando a inúmeras complicações, inclusive à morte.
Em 1973, um painel de especialistas – formado principalmente por acadêmicos, ativistas e profissionais médicos negros – estudou o incidente de Tuskegee em nome do governo federal. Em seu relatório final, o grupo recomendou a criação de um sistema para cuidar de pessoas feridas em ensaios, mesmo em casos em que ninguém fosse culpável.
“Uma pessoa se voluntaria como cobaia pelo benefício dos cidadãos de sua comunidade. E então, quando se machucam, dizemos: ‘Bem, o problema é seu, não nosso.’ “Mas que diabos?”
“Não importa o quanto os pesquisadores sejam cuidadosos, o inevitável prejuízo a alguns é o preço que a sociedade há de pagar pelo privilégio de se envolver em pesquisas que, no final das contas, beneficia a muitos”, escreveu o grupo. Todas as instituições que recebem verbas federais para pesquisa, concluíram, devem ser obrigadas a ter um plano em vigor “para garantir a compensação dos sujeitos prejudicados como resultado de sua participação na pesquisa”.
Aparentemente, nada aconteceu. Em 1977, uma força-tarefa do governo fez uma recomendação semelhante. Uma comissão presidencial de 1982 pediu às autoridades federais que realizassem um estudo de um possível modelo para compensação.
Wikler, o filósofo de Harvard, integrou a equipe de apoio ao painel de 1982. Mesmo naquela época, lembra ele, a falta de apoio aos sujeitos de pesquisa feridos já parecia um problema crônico. “Pessoas que se machucavam ou eram prejudicadas em um experimento às vezes ficavam chocadas ao descobrir que ninguém se manifestava para cuidar delas”, disse ele.
Há um forte argumento ético para que tais cuidados sejam fornecidos, disse Wikler: As pessoas que se inscrevem em um ensaio estão consentindo a assumir um risco modesto que beneficia a sociedade como um todo. Em troca, elas devem receber algum tipo de cuidado e apoio na eventualidade do ensaio não der certo.
As recomendações de Wikler e seus colegas do início da década de 1980 não deram em nada. “Acontece que havia um grande lobby contrário à indenização de pacientes feridos”, lembrou ele, “o que eu não imaginava.” Na época, disse ele, as organizações científicas profissionais temiam que um sistema assim aumentasse custos e atrapalhasse a pesquisa.
Nas décadas seguintes, ao menos quatro painéis de especialistas de alto nível a mais aconselharam a ação, incluindo, mais recentemente, uma comissão de 2011 encarregada de revisar a prática de pesquisa nos EUA pelo então presidente Barack Obama. (Atualmente, as normas exigem que os pesquisadores informem aos participantes se há ou não indenização por lesões, mas não que a forneçam).
Essa falha fez com que os EUA se tornassem globalmente uma exceção; atualmente, países ricos, como a França, garantem indenização e apoio a pessoas que se machucam em ensaios. O mesmo acontece em nações menos ricas onde empresas farmacêuticas globais realizam ensaios clínicos, como o Brasil e a Índia.
NEM TODOS ESTÃO CONVICTOS de que intervenção do governo irá resolver o problema
Há mais de uma década, quando a comissão de Obama investigou a compensação, duas grandes organizações da indústria farmacêutica – a Biotechnology Innovation Organization e a Pharmaceutical Research & Manufacturers of America, ou PhRMA – sugeriram que uma mudança na prática era desnecessária, visto que empresas já concordam regularmente em fornecer essa compensação, mesmo que não seja legalmente exigida. (Nenhuma das organizações indicou ter hoje uma posição política firme sobre a questão; em um e-mail à Undark, o diretor sênior de assuntos públicos da PhRMA, Andrew Powaleny, disse que o grupo apoia “uma estrutura regulatória que apoie o acesso e a participação dos pacientes em ensaios clínicos”).
É difícil saber com que frequência as empresas honram essas reivindicações, embora algumas fontes envolvidas nesses casos digam que os patrocinadores de ensaio de fato oferecem alguma indenização. “Por uma questão de prática, quase sempre em um estudo financiado pela indústria, o patrocinador do estudo aceita pagar por algumas lesões”, disse David Peloquin, sócio do escritório de advocacia Ropes & Gray, sediado em Boston.
Essa falha fez com que os EUA se tornassem uma exceção global; atualmente, países ricos, como a França, garantem indenização e apoio a pessoas prejudicadas em ensaios.
Peloquin é especialista na legislação de ensaios clínicos, incluindo trabalhos em prol de empresas farmacêuticas realizadoras de pesquisas. Segundo um acordo típico, disse Peloquin, a empresa determina quem se qualifica para o pagamento, mas tendem a errar na hora de fornecer a compensação, em parte para manter boas relações com as instituições parceiras. No entanto, a extensão dessa cobertura é limitada. “Normalmente, o patrocinador diz especificamente: ‘Estamos pagando pelo tratamento, o custo do tratamento de sua lesão, e não por qualquer outra coisa, como salários perdidos ou cuidados com os filhos que você tenha de pagar enquanto estiver recebendo tratamento'”, disse Peloquin.
No entanto, muitos testes clínicos são realizados por universidades e hospitais, e não por grandes empresas privadas. Nesses casos, segundo alguns especialistas, as normas parecem irregulares. Em 2012, um grupo de pesquisadores fez um levantamento de 200 grandes centros de pesquisa nos EUA e descobriu que quase 60% não garante indenização a sujeitos de pesquisa feridos. Mesmo aqueles que prometiam algum tipo de compensação raramente ofereciam apoio além do que os autores da pesquisa chamam de “cuidados médicos imediatos”.
David Resnik, principal autor do estudo e bioeticista do National Institute of Environmental Health Sciences, disse que não tem conhecimento de dados mais recentes. porém, ele escreveu no e-mail enviado à Undark por meio de um representante, “não há motivos para acreditar que algo tenha mudado significativamente”.
Algumas instituições federais possuem normas em vigor. O National Institute of Environmental Health Sciences, por exemplo, oferece apoio médico limitado aos participantes por lesões sofridas ao longo um ensaio.
Quando indivíduos não conseguem obter indenização, eles podem processar – e alguns advogados conseguiram criar nichos de sucesso atendendo a esses clientes. Em 1999, o advogado Alan Milstein, de Nova Jersey, assumiu o caso de Jesse Gelsinger, um jovem de 18 anos que morreu enquanto participava de um teste de terapia genética na Universidade da Pensilvânia. A universidade acabou chegando a um acordo com a família por uma quantia considerável. O processo incluía alegações de falhas em ética e supervisão.
“Vários advogados que atuam em casos de negligência médica e não estão familiarizados com a natureza dos ensaios clínicos, quando veem um documento de consentimento informado, acreditam que um litígio é difícil, se não impossível”, disse Milstein recentemente à Undark. Isso não é necessariamente verdade, disse ele: “Quando eu aceito um caso, geralmente sou bem-sucedido”.
Mas esses casos, segundo alguns especialistas jurídicos, às vezes podem ser difíceis de ganhar. “Já é difícil provar o nexo causal em casos de negligência médica”, disse Wendy Mariner, estudiosa de direito da saúde da Universidade de Boston. “É quase impossível tratando de algo que aconteceu durante um ensaio clínico.”
O processo de responsabilidade civil também pode ser lento e caro. “Essa é a resposta de um homem rico”, disse Arthur Caplan, especialista em ética da Universidade de Nova York.
COMO NINGUÉM COLETA DADOS sobre o número de sujeitos de pesquisa lesionados nos EUA, é difícil saber quantas pessoas potencialmente têm direito à indenização e quantas podem não conseguir atendimento. Uma indicação vem da Universidade de Washington, onde existe um programa desde 1979 que oferece indenização a sujeitos de pesquisa feridos. (Embora algumas outras escolas tenham formas de oferecer indenização, os bioeticistas que estudam ensaios clínicos citam com frequência o programa da UW como modelo).
As instituições médicas da universidade oferecem até US$ 250.000 em cuidados médicos para pessoas que se ferem em ensaios, bem como US$ 10.000 para cobrir outras despesas. Os pesquisadores e administradores da universidade são responsáveis por determinar se uma lesão específica é elegível.
O programa não é muito utilizado. O amplo aparato de pesquisa da universidade patrocina milhares de ensaios, mas nos últimos cinco anos, apenas oito pessoas recorreram à indenização do programa, de acordo com Jason Malone, que dirige a Human Subjects Division (Divisão de Sujeitos Humanos) da universidade.
Ao longo dos anos, bioeticistas e estudiosos do direito propuseram uma série de propostas para um sistema que poderia cobrir os danos causados em pesquisas. Algumas propostas pedem uma espécie de fundo de compensação nacional centralizado, que desembolsaria uma quantia fixa de dinheiro para os sujeitos de pesquisa que façam uma alegação plausível de terem sofrido lesões durante um ensaio clínico. Outras propostas exigiriam que os patrocinadores da pesquisa tivessem um seguro para processar queixas ou que criassem programas semelhantes ao da Universidade de Washington.
Elliott, o bioeticista de Minnesota, defende que tal compensação acaba beneficiando tanto cientistas quanto sujeitos de pesquisa. “Se você tiver um sistema que diga: ‘Olhe, se você se voluntariar para um estudo de pesquisa e correr esses riscos em nome de outras pessoas, você está por sua conta'”, disse ele, “será difícil manter o empreendimento de pesquisa em andamento”.