A Associação Médica Mundial (AMM) adotou uma nova versão da Declaração de Helsinque (DH) durante sua 75ª Assembleia Geral, em outubro de 2024 [1]. Embora a revisão tenha introduzido mudanças positivas relacionadas aos direitos humanos dos participantes de pesquisa, persistem retrocessos significativos. Essas preocupações foram destacadas durante as consultas públicas pela Redbioética, uma rede interdisciplinar sem fins lucrativos de especialistas em bioética, criada em 2003 com o apoio da UNESCO, que submeteu recomendações [2] com base na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) da UNESCO [3].
Entre os avanços da DH de 2024, está a ampliação dos princípios éticos para além dos médicos, abrangendo também as equipes e organizações de pesquisa, ampliando, assim, a responsabilidade ética [4]. Além disso, o reconhecimento das “diversas desigualdades estruturais” na pesquisa em saúde e a ênfase na participação dos sujeitos e das comunidades em todas as etapas promovem a equidade e a justiça social. O conceito de vulnerabilidade também foi refinado para refletir suas dimensões dinâmicas, contextuais e sociais [4]. No entanto, esses avanços são atenuados por preocupações éticas persistentes.
A pandemia da Covid-19 evidenciou a importância de manter padrões éticos rigorosos durante emergências, especialmente em relação a intervenções não comprovadas. A DH de 2024 inclui avanços relevantes, como a exigência de que intervenções não comprovadas respeitem salvaguardas éticas. Contudo, não incorpora várias das medidas propostas pela Redbioética, incluindo a revisão ética obrigatória, o monitoramento contínuo de segurança e a obrigatoriedade de relato de estudos observacionais realizados em contextos não regulados. A ausência dessas disposições enfraquece a supervisão, compromete o equilíbrio entre riscos e benefícios e coloca em risco a segurança dos participantes.
Um dos problemas persistentes na DH de 2024 continua sendo a flexibilidade quanto ao uso de placebos — ou da ausência de tratamento — em ensaios clínicos. Seu uso é permitido em circunstâncias “justificadas metodologicamente”, desde que os pacientes “não sejam submetidos a riscos adicionais de danos graves ou irreversíveis em decorrência da não administração da melhor intervenção comprovada” [1]. No entanto, a interpretação dessa cláusula continua ambígua, o que mantém as preocupações éticas sobre padrões duplos na pesquisa médica internacional [5]. As alterações introduzidas no parágrafo sobre o uso de placebo na DH de 2013, mantidas na versão de 2024, “foram presumivelmente introduzidas para permitir comparações entre intervenções utilizadas em países com poucos recursos, comparando tratamentos existentes com novos” […] [6]. Defendemos diretrizes mais rígidas e acreditamos que o uso de placebo deve ser limitado a situações em que não exista tratamento comparador comprovado, eficaz e seguro [2,4]. Essa posição baseia-se nos princípios de respeito à dignidade humana e aos direitos humanos, e afirma que a proteção aos participantes da pesquisa deve sempre prevalecer [3].
Outra questão crítica é o acesso pós-estudo a tratamentos que se mostraram seguros e eficazes. Embora a DH de 2024 reconheça essa necessidade, não fornece um marco claro para sua implementação, deixando uma lacuna significativa. É preocupante que a versão de 2024 da DH transfira a decisão sobre o acesso pós-estudo aos comitês de ética em pesquisa, o que pode enfraquecer as proteções, particularmente em países com sistemas de supervisão ética menos robustos. A Redbioética tem defendido compromissos mais firmes por parte dos patrocinadores para garantir que os participantes da pesquisa, especialmente em países de baixa e média renda, tenham acesso às intervenções após a conclusão dos estudos [2,4], em consonância com o princípio do “compartilhamento de benefícios” da DUBDH [3].
É importante destacar que a Associação Médica do Uruguai apresentou moções contrárias aos parágrafos sobre uso de placebo e acesso pós-estudo durante a 75ª Assembleia Geral da AMM, em outubro de 2024. Apesar do apoio limitado, as associações médicas da Alemanha e da Holanda defenderam a proposta original, para evitar entraves à “pesquisa necessária” [7]. As moções uruguaias foram rejeitadas.
A Redbioética expressa sua preocupação com a versão 2024 da DH e une-se a esforços para ampliar seu impacto [2,4], instando os Estados a adotarem normas que vão além da versão atual e estejam mais alinhadas à DUBDH e ao mais alto nível de proteção aos participantes.
Referências